Jaçanã, São Paulo, Brasil -Este espaço pretende ser uma extensão de nossas conversas em sala de aula

quarta-feira, 14 de abril de 2010

OFICINA 1 - OLIMPÍADA DE LP - Texto e Áudio

A ÚLTIMA CRÔNICA                                Fernando Sabino



A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.

Clique no link abaixo para LER e  OUVIR  esta crônica

Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê- lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho - um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular.

A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.

São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "Parabéns pra você, parabéns pra você...". Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura - ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido - vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.

Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.

Elenco de cronistas modernos. 21ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.





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Sabino, Fernando (1923 - 2004)
Biografia

Fernando Tavares Sabino (Belo Horizonte MG 1923 - Rio de Janeiro RJ 11/10/2004). Cronista, romancista, contista, editor e documentarista. Filho do representante comercial Domingos Sabino e da dona-de-casa Odete Tavares Sabino. Publica seu primeiro trabalho literário aos 13 anos, na revista Argus, órgão da Polícia Militar mineira. Aos 15, colabora com as revistas Alterosas e Belo Horizonte. Convive, na adolescência, com o contista Otto Lara Resende (1922 - 1992) e com o psicanalista Hélio Pellegrino (1924 - 1988), de quem é amigo desde o jardim-de-infância. Estréia em livro, em 1941, com a reunião de contos Os Grilos Não Cantam Mais, e, no mesmo ano, entra na faculdade de direito. Muda-se para o Rio de Janeiro, em 1944, e na cidade conclui o curso de graduação. Transfere-se, então, para Nova York, para trabalhar no Escritório Comercial do Brasil e depois no consulado brasileiro. Inicia a redação do romance O Grande Mentecapto, em 1946, retomado apenas 33 anos depois. Em 1947, começa a publicar crônicas no Diário Carioca e O Jornal, reproduzidas em vários outros periódicos espalhados pelo Brasil, consolidando seu nome como um dos renovadores do gênero, ao lado de Rubem Braga (1913 - 1990). Escreve, ainda nesse ano, o romance Os Movimentos Simulados, publicado postumamente, em 2004. Lança, no ano de 1956, o romance O Encontro Marcado, que fixa seu nome também na prosa de ficção. Entra para o ramo editorial, no início da década de 1960, fundando com o amigo Rubem Braga a Editora do Autor e posteriormente, em 1966, a Editora Sabiá, ambas importantes para o lançamento de obras de autores brasileiros. A partir de 1971, realiza uma série de documentários cinematográficos. Como jornalista, cobre diversas eleições presidenciais e faz várias entrevistas com escritores e artistas brasileiros e estrangeiros.


www.itaucultural.org.br/literatura

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